Entre torres de marfim e deuses de ébano
O projeto foi parte da mostra “Implosão: Trans(relacion)ando Hubert Fichte”, com curadoria do filósofo Max Jorge Hinderer Cruz e do artista Amilcar Packer, e foi apresentado no Museu de Arte Moderna da Bahia e no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica no Rio de Janeiro. A iniciativa faz parte de um grande projeto internacional, concebido por Anselm Franke e Diedrich Diederichsen, lançado na Alemanha pela Haus der Kulturen der Welt (HKW) em parceria com o Goethe-Institut.
Na obra de Letícia Barreto o interesse pela antropologia e etnografia inicia-se em 2007 com o projeto Estrangeiro em Mim, sobre sua experiência como imigrante brasileira em Portugal, que posteriormente foi transformado num projeto de mestrado. Durante o desenvolvimento do trabalho, mais do que os aspectos de género e nacionalidade, o que mais intrigava a artista era tentar compreender os motivos pelos quais temos tanta dificuldade em lidar com a diferença, seja ela de que género for. Mas segundo Kapuscinski, a primeira coisa que chama a atenção no contacto com o outro é a cor da pele, que acaba por constituir um lugar principal, dentro da escala de separação e avaliação das pessoas. Ao ultrapassarmos a fronteira da nossa zona racial, torna-se impossível não reflectir sobre o que significa ser negro, branco ou amarelo (Kapuscinski, 2009:58). Por isso o interesse da artista não apenas em estudar o racismo e sua construção histórica, mas especialmente reconhecer o papel da branquitude nesse processo.
Assim, em sua obra, a reacção química da água sanitária sobre o tecido alude metaforicamente a um “branqueamento do pensamento”, marcadamente etnocentrista. A marca do preconceito, assim como a da água sanitária, é profunda e permanente.
Nesse processo de apagamento, de despigmentação das superfícies nas quais trabalha, a artista tenta, emprestando uma expressão de Fichte, “chegar às camadas mais profundas de si”, ao investigar a própria identidade branca, e o seu próprio racismo, herdado das sociedades onde nasceu e também na qual hoje vive, racismo institucionalizado e entranhado na cultura e nos hábitos cotidianos, dos quais nem nos damos conta, um dado estrutural na nossa formação social. Olhar de frente o passado colonial e pós colonial e as consequências destes no presente e no futuro.
“Os discursos sobre as culturas e religiões de descendência africana foram e ainda hoje são marcados por distorções históricas, políticas, literárias e culturais.” (Claudius Armbruster, 2004). Muitos foram os viajantes estrangeiros que dirigiram seus olhares às periferias. Fichte (e sua companheira Leonore Mau), Verger e Carybé, além do brasileiro Jorge Amado aproximaram-se da cultura afro-brasileira, abordando a experiência da alteridade de diferentes formas, explorando a fronteira fluida entre a etnografia e a arte. Pesquisadores nada convencionais, fundiram-se com o objecto pesquisado, tornando-se parte integrante do universo investigado.
Nessa nova série que a artista apresenta, as pinturas foram concebidas a partir de fotografias históricas desses pesquisadores/artistas, e das belíssimas fotografias de José Medeiros e especialmente de Pierre Verger onde os aspectos do exótico/erótico são bastante evidentes. No discurso desses estrangeiros sobre a baianidade, quem é realmente o “outro”?